Depois de doze anos de sofrimento, a Lilian partiu. Queria ir, pedia a Deus todos os dias que a levasse. Tanto
insistiu que Ele acabou atendendo o seu pedido, contra a minha vontade.
Seu eu tivesse que contar a história da minha vida com ela precisaria escrever um livro. Um só não seria suficiente.
Começamos a namorar no verão de 1961, e de lá para cá, quase todo o tempo foi a felicidade que rondou a nossa casa.
Lembro que logo depois que casamos eu continuava a levar a vida como se solteiro ainda fosse. Havíamos combinado que as despesas com alimentação seriam dela, e o resto todo caberia a mim. Certo dia chego em casa e vi na sala uma mala. Perguntei a ela o que significava aquilo e ela me respondeu que ia embora. Me disse que não casara para sustentar marido.
Na minha solteirice eu esqueci de contribuir com a minha parte. A solução que ela encontrou para que resolvêssemos o problema? Eu deveria entregar a ela todo o meu salário e comprar um livro caixa, no qual ela registraria as entradas e saídas. Foi o que fiz. Num momento em que ela saiu da sala fui ver o que continha a mala, e dentro dela não havia nada. Estava vazia. Ela foi, desde o início, uma estrategista.
Sempre foi a mulher que impulsionou a minha vida, e devo reconhecer, como verdade, que ela sempre esteve um passo à minha frente.
Desde o AVC que a atingiu fortemente no longínquo ano de 2010, e durante todos esses anos, a saúde dela foi declinando gradativamente. Foram longos doze anos. Ultimamente não caminhava mais. Reclamava muito de sua situação de fragilidade.
Sua mente, no entanto, funcionava no passado, no tempo em que ela construía prédios, comprava imóveis. Até um apartamento em Paris ela “comprou”, por quinze euros, que depois da reforma que fez” já valia mil”.
Se me perguntarem se Deus foi justo para com ela digo que não. No entanto, ela tanto pediu que Ele a atendeu e a levou.
Levou, e me deixou aqui envolto numa triste e impressionante solidão, onde a lembrança da sua presença me acompanhará até o fim dos meus dias.
Olhando as fotos dela espalhadas por aí, lembrei de uma música francesa que tem por título “Que reste- t-il de nous amour””, se não me falha a memória criada por Charles Trenet, que diz mais ou menos o seguinte:
Esta noite o vento que golpeia a porta Me fala dos amores mortos
Diante do fogo que se apaga
Esta noite é uma canção de outono
Dentro da casa que arrepia
E penso nos dias que se foram
O que resta dos nossos amores
O que resta daqueles belos dias
Uma fotografia, (uma) velha fotografia
Da nossa juventude
O que resta dos bilhetinhos de amor
Dos meses de abril, dos encontros
Uma lembrança que me persegue
Sem cessar
Felicidade desvanecida,
cabelos ao vento
Beijos roubados, sonhos mudados
O que resta de tudo isso
Diga-me
Uma pequena aldeia,
um velho campanário
Uma paisagem assim bem escondida
E numa nuvem vejo o querido rosto
Do meu passado
As palavras, as ternas palavras
Que murmura
As carícias mais puras
Os juramentos no fundo do bosque
As flores que (se) reencontra
Dentro de um livro
Cujo perfume nos embriaga.
Levantou voo
Por que?