Em cartaz na Netflix, Nada de Novo no Front (Im Westen nichts Neues, 2022) recebeu nesta terça-feira (24) oito indicações ao Oscar 2023: melhor filme, longa internacional (representando a Alemanha), roteiro adaptado, fotografia, design de produção, som, música original e efeitos visuais. Merecia mais. O diretor Edward Berger também poderia estar na lista divulgada pela Academia de Hollywood, assim como o editor Sven Budelmann e o ator estreante Felix Kammerer.
As trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), onde morreram milhões de soldados enquanto tentavam avançar apenas alguns poucos metros no terreno, são o cenário de Nada de Novo no Front, que lidera a corrida pelo Bafta, o prêmio da Academia Britânica (são 14 indicações). Trata-se da terceira versão cinematográfica de um clássico da literatura antibelicista lançado em 1929 pelo alemão Erich Maria Remarque (1898-1970).
A primeira, chamada no Brasil de Sem Novidade no Front (1930, disponível para aluguel em Amazon Prime Video e Apple TV), conquistou o Oscar de melhor filme e o de melhor diretor (o russo radicado nos EUA Lewis Milestone), além de concorrer aos troféus de roteiro e fotografia. É um dos mais célebres títulos cinematográficos sobre a Primeira Guerra, ao lado de Glória Feita de Sangue (1957), de Stanley Kubrick, Gallipoli (1981), de Peter Weir, e 1917 (2019), de Sam Mendes.
A segunda, conhecida como Adeus à Inocência (1979), foi feita para a TV estadunidense e recebeu sete indicações ao prêmio Emmy, incluindo melhor especial dramático ou cômico, direção (Delbert Mann), ator coadjuvante (Ernest Borgnine) e atriz coadjuvante (Patricia Neal) — venceu na categoria de edição.
Agora, a obra do escritor alemão ganha uma versão em seu idioma, sob o comando de Edward Berger, diretor que já trabalhou nos mercados dos EUA e da Inglaterra — assinou a minissérie Patrick Melrose (2018), com Benedict Cumberbatch, três episódios de The Terror (2018) e três de Your Honor (2020).
Nada de Novo no Front baseia-se nas lembranças do próprio Remarque, soldado das tropas alemãs nos anos iniciais da Pimeira Guerra — consta que foi ferido várias vezes. Essa vivência contribuiu bastante para a veracidade do relato, como comentou a professora de Literatura e ensaísta Regina Zilberman em uma entrevista a ZH em 2011, falando ao jornalista Luiz Antônio Araújo sobre a disciplina Literatura, Guerra e Revolução, da pós-graduação da UFRGS:
— Sua personagem, Paul Bäumer, faculta ao leitor o conhecimento efetivo da experiência pessoal diante da inevitabilidade da mutilação e da morte, bem como da violência, do descaso das autoridades, do patriotismo de encomenda.
No filme da Netflix, Bäumer é interpretado com assombro e sensibilidade pelo estreante Felix Kammerer. Quando a trama começa, ele e outros jovens amigos alistam-se “pelo Kaiser, por Deus e pela pátria”. Estão radiantes, mas logo estarão profundamente amedrontados — “Quero ir pra casa!”, chora um deles diante do trabalho árduo e absolutamente insalubre em uma trincheira. Bäumer, pelo menos, contará com uma espécie de mentor e protetor, Katczinsky (Albrecht Schuch, dos premiados Transtorno Explosivo, de 2019, e Berlin Alexanderplatz, de 2020).
Alternadamente, acompanhamos os bastidores políticos, nos quais estão envolvidos personagens reais, como Matthias Erzberger, que era contrário à guerra e que acabou encarregado pelo governo alemão de negociar um armistício, e o marechal francês Foch, implacável e irredutível em seus termos para o cessar-fogo. O primeiro é encarnado por Daniel Brühl, de Adeus, Lênin (2003) e Bastardos Inglórios (2009). O segundo, por Thibault de Montalembert, o Charles VI de O Rei (2019) e o Mathias Barneville do seriado cômico Dix pour Cent (2015-2020). Nessas passagens, Edward Berger adota o contraste da ambientação para indignar ainda mais o espectador: opõe a realidade dura e suja dos soldados ao luxo dos lugares frequentados pelos oficiais do alto escalão de ambos os lados. Já dizia aquele célebre aforismo: “A guerra é um lugar onde jovens que não se conhecem e não se odeiam se matam, por decisões de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam”.
Coautor do roteiro, o diretor é muito competente ao apostar na força da narrativa visual — a propósito, é um pecado que este Nada de Novo no Front, cheio de imagens poderosas, não tenha sido lançado também nos cinemas brasileiros, mesmo que em um circuito limitado. As primeiras sequências são sublimes, ainda que lúgubres, em mostrar a guerra como uma máquina de moer vidas em moto-perpétuo. Nessa indústria da morte, tudo precisa ser reciclado, tudo precisa ser passado adiante: as botas e os uniformes saem de um cadáver para o próximo corpo a ser exposto às baionetas, às granadas, ao gás, ao frio, à fome, à lama.
O som também desempenha papel importante. Não apenas com as composições de Volker Bertelman — indicado ao Oscar, ao Bafta e ao Globo de Ouro, na companhia de Dustin O’Hallaran, pela trilha de Lion (2016) —, uma música disruptiva que, por seu caráter repetitivo, igualmente remete à constância e à inevitabilidade da morte. Mas também com os efeitos sonoros: as máquinas de costura em que são reparados os uniformes militares dos jovens que tombaram no campo de batalha matraqueiam como se fossem metralhadoras.
Seguros quanto ao teor crítico e pacifista do original de Remarque, Berger e o diretor de fotografia James Friend não têm receio de encontrar beleza em meio à devastação (a exemplo do que fizera Terrence Malick em Além da Linha Vermelha, ambientado na Segunda Guerra Mundial). Mas é uma beleza fantasmagórica, enevoada. Até que de repente surgem tanques, vistos pelos soldados alemães como se fossem monstros corpulentos e irrefreáveis. Até que de repente as tropas aliadas lançam chamas, como se fossem dragões a cuspir fogo.
O horror, o horror.
Talvez Berger tenha se tornado reincidente na exposição dos episódios sangrentos e sofridos encarados por Bäumer — o peso faz-se sentir na própria duração do filme: duas horas e 28 minutos. Por outro lado, o ritmo cadenciado permite apresentar cenas extremamente sensíveis, quase delicadas, dado o contexto. Um exemplo é aquela em que o protagonista depara com um inimigo dentro de uma trincheira. Antes que o outro perceba, ele ataca e o apunhala. O soldado francês agoniza. Aos poucos, Bäumer aproxima-se dele, observa o seu rosto, se compadece, dá-lhe água do cantil, tenta consolá-lo. Identifica-se com ele. Compreende que são iguais.
Sem recorrer a muitas palavras, o filme de Berger consegue traduzir a conversa que, no livro de Remarque, o soldado alemão trava com o cadáver francês: “Companheiro, não queria matá-lo. Se saltasse novamente aqui para dentro, não o faria, se você também fosse razoável. Mas, antes, você era apenas um pensamento, uma dessas abstrações que povoam meu cérebro e que exigem uma decisão… Foi essa abstração que apunhalei. Mas agora (…) agora vejo sua mulher, seu rosto e o que temos em comum. (…) Perdoe- me, companheiro. Como é que você pôde ser meu inimigo? Se jogássemos fora estas armas e estas fardas, poderia ser meu irmão (…). Tire vinte anos da minha vida, companheiro, e levante- se… Tire mais, porque não sei o que farei deles agora”.