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Homenagens e espera por análise de recursos para novo júri marcam os 10 anos do incêndio na Boate Kiss

Uma vigília em frente ao prédio onde funcionou a Boate Kiss, em Santa Maria, inicia-se às 22h desta quinta-feira (26). O horário marca o momento em que começou, exatamente há 10 anos, a movimentação de pessoas para a festa que teve início por volta de 23h. A homenagem é mais uma que ocorre no município que foi palco da maior tragédia do Estado, no dia 27 de janeiro de 2013, e que é considerada a segunda do país em número de mortos — 242 vítimas — e ainda o terceiro maior desastre em casas noturnas no mundo.

Mas por trás de números e datas, familiares, sobreviventes e entidades relatam que os eventos na cidade ocorrem como resposta ao esquecimento e para que não ocorram novos fatos semelhantes. Eles consideram que, uma década depois, o episódio é uma página que ainda não foi virada, principalmente porque seguem em análise recursos sobre e contra a anulação do julgamento que condenou quatro réus no final de 2021. Enquanto o luto não tem fim em meio ao trauma e à impunidade, quem busca por justiça entende que “resgatar a memória é construir o futuro”.

Com este slogan, a programação teve início na quarta-feira (25) e se estende até sábado (28). Além da vigília e de painéis com debates sobre questões jurídicas, psicológicas e de prevenção a incêndios, haverá exibição de documentário sobre o caso, soltura de balões, missa e colagem de fotografias e frases em vários locais, formando uma espécie de memorial por vias públicas em um caminho até a Kiss.

“Uma página que não foi virada”

Esta foi a afirmação do juiz Orlando Faccini Neto, que presidiu o júri da Boate Kiss em Porto Alegre, em dezembro de 2021, mas que foi anulado em agosto de 2022. Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, sócio da Kiss, havia sido condenado a 22 anos e seis meses de prisão em regime fechado. Mauro Hoffmann, também sócio da Kiss, tinha sido condenado a pena de 19 anos e seis meses de prisão. Vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos foi sentenciado a 18 anos, mesma pena de Luciano Bonilha Leão, produtor de palco da banda.

Segundo o magistrado, o sentimento é de desolação, uma frustração profissional pelo fato de que considera ter direcionado o julgamento com isenção, imparcialidade e dinamismo voltados para uma melhor conclusão possível.

Faccini Neto, que agora está em uma vara judicial voltada a julgar ações do crime organizado e lavagem de dinheiro, afirma que todas as suas decisões foram fundamentadas, independentemente do resultado, na transparência. Mas o sentimento ao qual se refere a respeito de um novo júri está relacionado à consciência de que decisões judiciais não podem repor o passado e não restauram o que se perdeu.

O magistrado também entende que a demora na finalização de casos como esse agrava a dor das pessoas e que, passada uma década, é inaceitável que não se tenha uma solução definitiva. Ainda assim, destaca que o sistema judiciário permite todos os recursos possíveis e que cabe a todos conviver com essa realidade, ainda que lamentando o ocorrido:

— Espero que, em alguma medida, tenhamos consciência de que processos criminais precisam terminar e que os olhos da Justiça criminal não devem estar voltados exclusivamente para os acusados. Precisamos compreender que familiares, vítimas e comunidade em geral precisam ter uma solução para a possibilidade de se virar a página, avançar na vida, apesar do drama e da dificuldade. Enquanto não terminam, a vida fica pendente, fica suspensa, e arriscamos amplificar uma dor que já é imensurável.

Precisamos compreender que familiares, vítimas e comunidade em geral precisam ter uma solução para a possibilidade de se virar a página, avançar na vida, apesar do drama e da dificuldade. Enquanto não terminam, a vida fica pendente, fica suspensa, e arriscamos amplificar uma dor que já é imensurável.

ORLANDO FACCINI NETO

Juiz que presidiu o júri da Boate Kiss em Porto Alegre, em dezembro de 2021, que acabou anulado

Advogado que representa a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e que também foi assistente de acusação no julgamento anulado, Pedro Barcellos Júnior diz que, após o Tribunal de Justiça (TJ) decidir, em agosto do ano passado, por um novo julgamento, a sensação é de que foi mais um dia doloroso e trágico:

— Eu entendo o sistema, mas os pais não, o que é compreensível. Todos acreditam que nunca vai ter fim, que estão sempre contra nós, que não querem que os responsáveis sejam culpados. Passam mil coisas no imaginário, apesar de ter ocorrido uma questão técnica (anulação). A cabeça dos pais fica confusa.

Barcellos Júnior será um dos painelistas na campanha que ocorre nesta semana em Santa Maria, e falará justamente sobre questões jurídicas.

Relembre a anulação do júri que condenou os quatro réus e o que está em análise para um novo julgamento

Ariádini de Andrade, psicóloga e psicanalista, integrante do Eixo Kiss, do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria e da organização da programação dos 10 anos da tragédia, reforça que a responsabilização no âmbito da lei precisa ocorrer o mais rápido e da forma mais justa possível.

— Um crime que passa impune pelo Poder Judiciário contribui para que não seja possível “virar a página”. Mas é importante não confundirmos “virar a página” com esquecê-la. Precisamos, sim, coletivizar as memórias, torná-las páginas a serem lembradas — diz a psicóloga.

Vigília, balões e debates

Assim como uma das primeiras atividades já realizadas sobre os 10 anos do incêndio na Kiss — a simulação de como estariam atualmente as fisionomias de oito vítimas, que vem sendo realizada desde o início de janeiro —, a ideia do atual evento em Santa Maria é resgatar a memória. O advogado Barcellos Júnior, da AVTSM, diz que todas atividades sempre serão bem-vindas para que o fato não caia no esquecimento.

— Falo isso porque o ser humano não está nem aí para o outro. Já ouvi várias vezes: “Para mim já teria acabado, vão chorar em casa, se eles (vítimas) estivessem numa igreja, por exemplo, não teriam morrido”. O ser humano é ruim.  Essa data tem que continuar para que a gente não esqueça quantos morreram. Se deixar, cai no esquecimento e ainda exaltaremos quem deixou de fazer o que deveria ter feito para que não ocorresse a tragédia — diz o advogado.

Essa data tem que continuar para que a gente não esqueça quantos morreram. Se deixar, cai no esquecimento e ainda exaltaremos quem deixou de fazer o que deveria ter feito para que não ocorresse a tragédia.

PEDRO BARCELLOS JÚNIOR

Advogado que representa a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM)

Na quarta-feira (25) à noite, houve a colagem de frases e fotos compondo um memorial coletivo no caminho da Praça Saldanha Marinho até a casa noturna. Nesta quinta (26), haverá coletiva de imprensa, debate sobre os 10 anos da associação, bem como exibição do primeiro episódio de um documentário sobre o incêndio e a vigília.

Na sexta-feira (27), exatamente uma década após a tragédia, ocorrida por volta de 2h30min do dia 27 de janeiro de 2013,  haverá uma soltura de balões pela tarde, mais debates, desta vez relacionados a questões jurídicas e de prevenção a incêndios, além de um painel com autores de livro e de série sobre a tragédia. Também estão previstos culto ecumênico e missa.

A prefeitura de Santa Maria está auxiliando todas as atividades, fornecendo estrutura, mobilidade urbana, segurança e outros serviços. Já a Brigada Militar, por meio do comandante do 1º Regimento de Polícia Montada, major Rogério Glanzel Alves, ressalta que houve reforço no efetivo até o fim de semana. Há policiais a cavalo, a pé, bem como em motos e viaturas nos locais onde ocorre evento. O setor de inteligência também está em ação para agir de forma preventiva.

Marcas históricas

A psicóloga Ariádini diz que as homenagens dos 10 anos da tragédia são importantes pelo fato de marcarem um período. Haverá outras, como por exemplo, nos 20 anos e assim por diante. Enquanto isso, ressalta, os envolvidos não ficarão apenas à espera de novas decisões judiciais, mas seguirão realizando ações que “façam furos no silenciamento”.

Não deixar que o incêndio na Boate Kiss, com todas suas dores e sofrimentos, caia no esquecimento é uma tarefa de todos nós.

ARIÁDINI DE ANDRADE

Psicóloga e psicanalista, membro da organização da programação dos 10 anos da tragédia

— O verbo reclamar, em sua origem, vem do verbo gritar. Se as vozes das famílias, e não somente as delas, fossem escutadas, não seria preciso que elas gritassem ou reclamassem. Não deixar que o incêndio na Boate Kiss, com todas suas dores e sofrimentos, caia no esquecimento é uma tarefa de todos nós — reforça Ariádini.

Outro objetivo dessas ações, destaca a especialista, é aproximar as pessoas,  ajudando-as a olhar para as feridas e entender que é preciso compreendê-las para aprender a conviver com elas. Por isso, há anos ocorre um trabalho, junto à comunidade, de preservação e construção de memórias.

O sobrevivente Delvani Rosso, 30 anos, que levantou a camisa em plenário durante o julgamento para mostrar as cicatrizes de queimadura nas costas, lembra de tudo que passou no dia da tragédia e no júri,  e do que ainda passa em relação a um sentimento de descrédito na sociedade como um todo.

— Já disse antes, falei no júri e irei repetir sempre: me lembro de tudo no dia 27 de janeiro até desmaiar. Percebi que iria morrer, que não conseguiria sair, e fui me despedindo da família, dos amigos. Fui tendo uma conversa com Deus. Passou um filme na cabeça, e desmaiei, acordando na calçada, em estado de choque. Por isso tudo e pela anulação do júri, disse pra mim mesmo que não vou gastar mais minha energia me preocupando com coisas que estão fora do meu controle. É desgastante — ressalta.

Rosso diz acreditar na “justiça divina”, principalmente pelo fato de ter sido salvo de dentro da boate pelo próprio irmão. Sobre os culpados, diz haver muito mais gente do que os quatro réus apontados criminalmente e acreditar que essas pessoas carregarão este peso para o resto de suas vidas, mas espera que tornem-se pessoas melhores.

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