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O tesouro escondido em garrafas de cerveja em navio afundado há 120 anos

O explorador Steve Hickman, técnico de mergulho e mergulhador amador, atravessou cuidadosamente uma das escotilhas até o porão de um navio afundando, onde ele pôde ver fileiras e mais fileiras de garrafas de vidro de cerveja preservadas, parcialmente enterradas no lodo marinho.

Assim que ele tirou a primeira garrafa do lodo, o sedimento se agitou e formou uma enorme nuvem. Com a visibilidade reduzida a zero, Hickman ficou efetivamente sem enxergar nada. Mas ele conhecia bem este naufrágio — já havia mergulhado ali muitas vezes antes. Ele seguiu em frente, tateando em busca de mais garrafas na escuridão. Depois de reunir e ensacar algumas, ele deixou o navio, e sua equipe carregou cuidadosamente as garrafas para a superfície.

O naufrágio era o Wallachia, um navio de carga que afundou em 1895 na costa escocesa após uma colisão com outra embarcação em meio a uma forte neblina. O Wallachia tinha acabado de zarpar de Glasgow, na Escócia, e estava abarrotado com vários tipos de carga, incluindo contêineres enormes de uma substância química chamada cloreto de estanho.

Mas o navio também tinha milhares de garrafas de bebidas alcoólicas a bordo. Muitas delas foram preservadas nas águas geladas do fundo do mar, onde o navio permaneceu por mais de um século.

Desde que começou a mergulhar no Wallachia na década de 1980, Hickman recuperou dezenas de garrafas contendo uísque, gim e cerveja. Mas sua última visita, um trabalho em equipe na companhia de vários mergulhadores, levou a algo inusitado. As garrafas que eles recuperaram foram entregues a cientistas de uma empresa de pesquisa chamada Brewlab, que, junto a colegas da Universidade de Sunderland, no Reino Unido, foi capaz de extrair levedura viva do líquido que havia dentro de três das garrafas. Eles usaram então essa levedura numa tentativa de recriar a cerveja original.

Em 2018, um projeto semelhante na Tasmânia usou levedura de garrafas de cerveja de 220 anos encontradas em um naufrágio para recriar uma bebida do século 18. Mas o estudo da levedura do Wallachia revelou uma surpresa.

Aquelas cervejas continham um tipo incomum de levedura, e a equipe por trás do trabalho está avaliando agora se essa cepa há muito tempo perdida poderia ter aplicações nas cervejarias modernas ou até mesmo melhorar as cervejas de hoje. É apenas um exemplo de um campo de pesquisa que cresce entre os fabricantes de cerveja e outros fermentadores de bebida que buscam cepas esquecidas de levedura na esperança de que possam ter bom uso.

Pesquisadores descobriram que mudar a levedura usada durante a fermentação pode conferir novos sabores interessantes à cerveja

Isso significa ir à caça das mesmas em garrafas encontradas em naufrágios, vasculhar recipientes antigos e coletar amostras de destilarias abandonadas, onde ainda podem estar, quem sabe, cepas fabulosas. Esse tipo de pesquisa é chamado de bioprospecção, e “ressuscitar” leveduras antigas poderia ter diversas aplicações, desde combater a poluição até auxiliar na produção de aromas para a indústria de perfumes.

Quando Steve Hickman começou a coletar garrafas de cerveja do Wallachia na década de 1980, ele conta que a cerveja ainda era — quase — bebível. Ele e amigos abriram garrafas em casa e distribuíram a bebida por copos. A cerveja, com quase 100 anos na época, assentou lentamente e gerou uma espuma espessa e cremosa — quase como na cerveja Guinness, ele recorda.

Mas a magia só vai até aí. “O cheiro era horrível”, diz Hickman. “Uma espécie de cheiro salgado de putrefação. Acho que essa seria a melhor descrição.” O gosto tampouco se salvava.

As garrafas traziam ainda outras surpresas — incluindo o fato de explodirem, diz Hickman. À medida que se ajustavam à pressão mais baixa acima do nível do mar, os gases dentro do recipiente se expandiam e, às vezes, quebravam o vidro.

Certa vez, Hickman deixou uma garrafa na mesa da cozinha da casa dos pais. Ela estourou enquanto eles estavam em outro cômodo, espalhando cerveja podre e fedorenta por toda parte. “Demorou muito para limpar”, ele recorda.

Hoje, a cerveja está ainda mais deteriorada — e ele nem pensaria em prová-la de novo. De maneira geral, tomar bebidas antigas pode não ser seguro porque você não tem como ter certeza se contêm bactérias ou produtos químicos nocivos.

No entanto, alguns dos companheiros de mergulho de Hickman foram capazes de provar a nova cerveja criada pelo Brewlab usando cepas de levedura isoladas das garrafas do Wallachia. Andy Pilley, topógrafo e mergulhador amador que também fez parte da expedição para resgatar a cerveja no naufrágio, estava entre os que provaram o resultado: uma cerveja encorpada com 7,5% de teor alcoólico. “Com certeza senti café e chocolate”, diz ele.

Foi Pilley quem decidiu mandar a cerveja do Wallachia para o Brewlab, após ter ouvido falar da empresa por acaso em um restaurante. Os cientistas do Brewlab, que teve origem na Universidade de Sunderland, estudam cepas de leveduras e técnicas de fermentação há anos. O fundador da empresa, Keith Thomas, diz que, uma vez que a cerveja do Wallachia estava em seu laboratório, ela foi tratada com a máxima cautela.

“Abrimos (as garrafas) em condições de laboratório com nível dois de contenção”, revela. Isso envolveu abrir as garrafas em um armário especial cheio de ar estéril, a fim de proteger os cientistas de possíveis patógenos na cerveja. Essa medida também garantiu que as amostras não fossem contaminadas por nenhuma cepa de levedura dos dias modernos.

Os testes genéticos revelaram que a cerveja do Wallachia continha dois tipos diferentes de levedura — Brettanomyces e Debaryomyces. Em um artigo sobre o tema, Thomas e seus colegas explicam que é incomum encontrar Debaryomyces em uma cerveja antiga, embora esse tipo de levedura tenha aparecido em algumas cervejas belgas feitas por fermentação espontânea, que depende de deixar o líquido pré-fermentado exposto ao meio ambiente, para que nele se instalem cepas de leveduras.

Algumas das cepas de leveduras mais comuns usadas na fabricação de cerveja são da espécie Saccharomyces cerevisiae. Geralmente, a fermentação ocorre quando as leveduras consomem os açúcares de grãos maltados, como a cevada. A levedura transforma esses açúcares em álcoois, dióxido de carbono e vários subprodutos. Alguns desses subprodutos conferem sabor e, portanto, cada cepa de levedura diferente, ao metabolizar do seu próprio jeito, produzirá um perfil de sabor distinto no produto fermentado. Tudo se resume ao genoma da cepa em questão, ou cepas, no plural, no caso da cerveja do Wallachia.

A maioria dos cervejeiros modernos não varia muito a levedura que usa, embora normalmente façam experiências com outros ingredientes, como o grão que fermentam ou o lúpulo que adicionam posteriormente no processo para dar sabor.

Alguns fabricantes de bebidas e cientistas argumentam que o uso de cepas de levedura mais diversas também pode influenciar fortemente o sabor e a robustez do produto final. Em resumo, experimentar uma levedura incomum pode resultar em uma cerveja melhor, por isso muitos estão se voltando para variedades esquecidas do passado.

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Thomas está satisfeito com os resultados do estudo da cerveja do Wallachia. Ele diz que a combinação das duas leveduras que encontraram na cerveja de 126 anos possa, talvez, inspirar inovações na indústria cervejeira de hoje. “As leveduras parecem conferir uma espécie de caráter de fazenda ou de ‘cavalo molhado'”, ele acrescenta.

Pode não parecer muito apetitoso, mas, com moderação, sabores terrosos como esse podem ajudar um cervejeiro habilidoso a criar uma bebida única e rica em sabor. Afinal, a fabricação de cerveja é um ato de equilíbrio.

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