Há dois anos, o Vale do Taquari enfrentava a maior tragédia natural do Rio Grande do Sul
Desastre afetou 107 municípios, deixou 54 mortos e mudou para sempre o cotidiano da região

Em 4 de setembro de 2023, o Vale do Taquari viveu o início de sua maior tragédia ambiental. O Rio Taquari saiu do leito com violência, invadiu cidades, destruiu bairros inteiros e ceifou vidas. Dois anos depois, as marcas ainda são visíveis — nas ruas, nas casas e na memória dos moradores.
Aquela segunda-feira começou com alertas de chuva e risco de inundações, mas nada preparou a população para o que estava por vir. Em poucas horas, o nível do Rio Taquari subiu de forma abrupta, alcançando mais de 29 metros em algumas localidades, e transformou o cenário de dezenas de cidades da região. A força da água arrastou veículos, cobriu casas, derrubou pontes e obrigou milhares de pessoas a buscar refúgio nos pontos mais altos que conseguiam alcançar.
O saldo foi devastador: 54 mortos, mais de 400 mil pessoas atingidas, centenas de feridos, milhares de famílias desalojadas e um prejuízo estimado em R$ 1,3 bilhão. Cidades como Muçum, Roca Sales, Encantado, Estrela, Lajeado e Cruzeiro do Sul foram atingidas em cheio. A água subiu com uma velocidade que surpreendeu até os órgãos de proteção civil. Em muitos casos, moradores sequer tiveram tempo de sair de casa. Algumas comunidades passaram dias ilhadas, sem energia, água potável ou acesso por terra.
Muçum teve 80% do território urbano afetado. A tradicional ponte Brochado da Rocha foi levada pelas águas e só foi reconstruída este ano. Roca Sales viu bairros inteiros se apagarem do mapa, com escolas cobertas de lama até hoje. Em Estrela, o bairro Moinhos permanece desabitado, sem energia elétrica e sem autorização para novas ligações de água. Encantado sofreu com alagamentos severos, principalmente nas áreas próximas ao Arroio Jacaré, onde o rio tomou ruas e invadiu imóveis comerciais e residenciais. Em Cruzeiro do Sul, comunidades como Passo de Estrela simplesmente desapareceram sob a água. Lajeado teve a maior cheia em 150 anos, com impactos severos em diversos bairros e escolas interditadas por meses.
A resposta emergencial contou com o esforço conjunto de voluntários, forças de segurança, bombeiros, Exército e população civil. Milhares de doações chegaram à região, mas a reconstrução exigiu — e ainda exige — mais que solidariedade. Nos meses seguintes à tragédia, governos estadual e federal anunciaram recursos, programas habitacionais e convênios. No entanto, a maioria das obras ainda não foi concluída. Muitos projetos estão travados por entraves burocráticos, exigências técnicas ou falta de repasse.
Dois anos depois, centenas de famílias seguem em moradias provisórias, recebendo aluguel social ou vivendo em módulos emergenciais. Escolas destruídas não voltaram a funcionar. Obras públicas estão paradas. Em Muçum, a escola municipal Colégio Alternativo foi desativada definitivamente, e a prefeitura ainda avalia a criação de um memorial no local. Em Estrela, apenas 20 das 108 casas previstas pelo Estado estão em construção. Roca Sales aguarda liberação de recursos para erguer mais de 400 novas moradias. Encantado tenta avançar com loteamentos em áreas mais seguras, mas depende de atualizações no plano diretor e aprovação de estudos técnicos.
Além dos danos materiais, a enchente deixou um trauma coletivo. Muitas pessoas relatam dificuldades emocionais, perdas irreparáveis e medo constante de novas tragédias. E com razão: em novembro de 2023 e maio de 2024, outras duas grandes enchentes voltaram a atingir o Vale — a de maio, inclusive, superando a de setembro em volume de água e extensão.
Diante desse histórico recente, especialistas alertam que as mudanças climáticas tornaram os eventos extremos mais frequentes e imprevisíveis. A bacia do Rio Taquari-Antas é uma das regiões mais vulneráveis do Sul do Brasil. Projetos de prevenção estão em andamento, como a revisão dos planos diretores de sete cidades do Vale em parceria com a Univates, mas ainda há muito por fazer. O desafio agora é pensar o território com mais resiliência, segurança e planejamento urbano que considere o novo padrão climático.
A tragédia de 4 de setembro de 2023 mudou o Vale do Taquari. E, dois anos depois, o que deveria ser memória ainda é presente para milhares de pessoas. As águas baixaram, mas a reconstrução — física e emocional — está longe de terminar.