#CaliSchäffer | O relatório
Graciliano Ramos (1892-1953) é considerado um importante escritor brasileiro. A forma como escrevia suas histórias era seca, direta, de fácil compreensão. Nelas, sempre fazia uma análise psicológica dos personagens, dissecava o interior do ser humano.
No ano de 1936 foi preso sob a acusação de que era comunista. E era mesmo, mas dos que tinham dignidade. Ficou nove meses na prisão. Sobre essa fase dolorosa de sua vida, mais tarde escreveu Memórias do Cárcere.
Um dos seus livros que mais me chamou atenção foi São Bernardo. Nele, o personagem principal é Paulo Honório, um homem sem caráter, do tipo que faz qualquer coisa para atingir seus objetivos. Ali se fica sabendo como um homem pode ser canalha ao máximo. Com a ajuda de seu amigo Casimiro Lopes Paulo Honório manda matar seu fazendeiro vizinho, e consegue expandir os limites das terras da sua fazenda (que se chama São Bernardo). Para conseguir obter tudo ele comete as maiores injustiças e utiliza de todos os meios ao seu alcance, garantindo sua impunidade através de uma grande rede de relacionamentos. Seus ajudantes são: Gondim, o jornalista local; o padre Silvestre; e o advogado Nogueira, que manipula os políticos da cidade.
Recomendo a leitura.
Mas hoje eu quero tratar de outra característica da personalidade desse grande escritor. No ano de 1927 ele foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios, cidadezinha onde morava. Em 1929 ele enviou ao governador de Alagoas um relatório prestando contas da sua administração. Segundo ele próprio escreveu, esse relatório lhe criou muitos problemas.
No documento ele demonstrou como pôs “ordem na administração”, eliminando aqueles que interferiam nas decisões que deveriam ser tomadas. Descreveu tudo o que acontecia na prefeitura. Em relação aos funcionários, por exemplo, disse que: “Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas”.
Criticou (e reduziu) os gastos com telegramas e notícias sobre a administração e acontecimentos políticos, que considerou dispêndios inúteis: “um telegrama porque o deputado F. esticou a canela, que o deputado morreu e nós choramos”. Dizia que todos na cidade sabiam onde as pedras tinham sido colocadas na rua, e não precisava avisar ninguém que isso tinha acontecido.
O relatório é uma beleza de documento detalhista.
Contam que Graciliano discutiu com seu pai porque mandou um fiscal multa-lo por descumprir a ordem de não deixar animais soltos nas ruas. Magoado, seu pai foi reclamar e ele respondeu:
“ Pai, Prefeito não tem pai. Eu posso pagar sua multa. Mas terei de prender seus animais toda vez que o senhor os deixar na rua”
Grande Graciliano Ramos. Quem sabe se não foi por ser quem era (e não comunista), por ter posto ordem na administração da prefeitura e registrar tudo o que fez é que teve sérios problemas com o relatório. Mas é compreensível: certas coisas que atacou e eliminou acontecem até hoje no Brasil, e ninguém tem interesse em consertar.