#CaliSchäffer | O risoto do internato
Cursei os níveis primário e secundário no Ginásio Madre Margarida, uma escola católica importante, naquele tempo, administrada por religiosas do Sagrado Coração de Maria. O prédio desta escola existe até hoje no centro da cidade. É um casarão imponente, sólido, com diversos andares, internamente fresco no verão, mas frio no inverno.
Se os padres usavam uma batina preta, as irmãs, como as chamávamos, também usavam um hábito igualmente longo até os pés, da mesma cor. Abaixo do queixo uma espécie de papada branca, feita de uma fazenda que ficava dura de tão engomada. A testa era cingida por uma banda também branca. A cabeça ficava coberta por uma espécie de véu, que lhes caia pelas costas até a altura da cintura. Delas só se enxergava as mãos, o rosto, e nada mais. No meio do peito um coração vermelho trespassado por um punhal.
Os professores procuravam transmitir aos alunos o gosto pelas atividades literárias, A ideia era incutir-lhes uma formação humanística, transformá-los em cidadãos cultos.
O ginásio era uma escola mista, frequentada por moças e rapazes – o que já era uma evolução para a época -, embora sentássemos separados delas nas salas de aula e afastados nas filas que se formavam no início do período e após o recreio.
Éramos obrigados a usar uniforme. Os meninos vestiam calça azul marinho, sapato preto, meias brancas e camisa branca com gravata azul. Já as meninas, uma saia azul marinho plissada (que atingia a altura dos joelhos), blusa azul com listras brancas, gravata azul, sapatos pretos e meias brancas. E elas sabiam tornar sensual essa vestimenta: como no ágil volteio do corpo, na subida das escadas, no cruzar as pernas ao sentar, dentre outras tantas formas que encontravam para nos deixar “meio perturbados”, imaginando coisas proibidas no interior daquelas grossas e santificadas paredes.
Houve um tempo no qual estudei ali em regime de semi-internato. Não lembro quanto tempo isso durou nem porque meus pais me “internaram”, mas não deve ter sido por pouca coisa. Recordo que meu pai me largava em frente às escadarias de manhã cedo e voltava à tardinha para me buscar. O almoço no refeitório era coletivo para as juvenistas, as pensionistas, e os semi-internos, como eu. A comida era razoavelmente boa, mas de tanto comer pirão, que serviam todos os dias, passei muitos anos sem poder sequer ver ou sentir o cheiro desse alimento.
Num bilhete que me enviou em setembro de 2009, o Tadeu Ferri lembrou-me que no cardápio de certo dia constava risoto. De tão apimentado era impossível comer. Todos estavam reclamando. Era risoto e água. Ele disse ter, na época, uns oito ou nove anos. Na mensagem escreveu que diante da reclamação generalizada eu lhe pedi para arranjar, rapidamente, alguns jornais. Quando ele voltou com os jornais, neles embrulhamos todo aquele arrozinho horrível e colocamos no lixo. E quando as freiras recolheram as bandejas e os pratos constataram que o risoto havia sumido. Certamente pensaram que havíamos adorado comer aquela gororoba.
Como disse o Tadeu naquele curto escrito: “Há Cali! As recordações! Não serão elas que movem o mundo? ” Sim Tadeu, tens razão: as recordações movem o mundo. E por causa delas estou eu aqui, agora, matutando comigo mesmo, se não foi por tomar atitudes como essa que meus pais me “internaram” no colégio. Vai saber…