ColunaDaMari | As inúmeras interpretações da “compra assistida”

As chuvas intensas das últimas semanas e a previsão de novos temporais têm gerado tensão em boa parte da população, ainda abalada pelos traumas das catástrofes recentes. É verdade que, de lá para cá, tivemos avanços significativos por parte dos órgãos públicos, especialmente dos municípios atingidos, com destaque para a reestruturação e o fortalecimento das Defesas Civis. Isso pode ser comprovado pela atuação eficiente desde os primeiros alertas emitidos neste novo período de instabilidade, o que tem trazido mais tranquilidade para a população, ainda em processo de reconstrução. E é justamente nesse contexto de reconstrução que o tema da Compra Assistida merece atenção nesta coluna. É inegável que o programa tem beneficiado muitas famílias, oferecendo uma alternativa digna para recomeçar. No entanto, são as inúmeras interpretações da aplicação desse programa que têm gerado preocupação — e é sobre isso que me debrucei nas últimas semanas.
Ao pesquisar e ler atentamente sobre o tema, me deparei com casos de imóveis atingidos pelas cheias de setembro de 2023 e maio de 2024 sendo adquiridos por meio do programa. A questão é que não há, na legislação federal vigente, incluindo a Lei nº 14.620/2023 (que regulamenta o Minha Casa, Minha Vida), ou na Portaria MCID nº 682/2024, qualquer dispositivo que autorize, explicitamente, a compra de imóveis localizados em áreas alagáveis pelo Programa Compra Assistida. Pelo contrário: as normas que regem o Minha Casa, Minha Vida – Reconstrução, criado especialmente para atender vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, são claras ao estabelecer que os imóveis devem estar em áreas não condenadas pela Defesa Civil e fora de zonas de risco. O objetivo é simples: garantir segurança habitacional aos beneficiários.
No entanto, diante da gravidade da situação em municípios como Eldorado do Sul — onde mais de 80% dos domicílios foram inundados e 100% da área urbana foi impactada —, criou-se um precedente perigoso. Houve, nesses casos extremos, autorização para aquisição de imóveis em regiões elevadas, ainda dentro do mesmo município, desde que não classificadas como de risco. O receio é que essa flexibilização pontual abra brechas para interpretações amplas demais, sendo replicada em outros municípios, mesmo em contextos distintos.
Não se trata aqui de questionar a legalidade das compras, mas de alertar para o que parece óbvio: muitos bairros atingidos nas cheias de 2023 e 2024 não foram classificados integralmente como áreas de risco, como é o caso do bairro Porto XV, em Encantado. Parte dele foi classificada como área de arrasto; outra, como área segura. Mas todos nós sabemos — moradores, gestores, técnicos — quais casas foram atingidas e até onde o rio chegou. Então, surge o questionamento: se, após tudo o que aconteceu, uma família beneficiada pelo programa opta por adquirir um imóvel em um local que, embora não classificado como área de risco, já foi inundado, quem será responsabilizado em caso de uma nova tragédia?
Mais uma vez, serão os órgãos públicos chamados a reparar os danos? Vamos seguir apostando em soluções imediatistas que podem se tornar novos problemas estruturais amanhã? A reconstrução exige responsabilidade — e, também, memória.