“O racismo inventa muros. O amor constrói portas”
Em pleno século 21, ainda é o amor que desafia o racismo cotidiano. Um casal formado por um homem negro e uma mulher branca (e vice-versa) ainda, por incrível que pareça, segue sendo alvo de olhares tortos, comentários velados e preconceitos que insistem em sobreviver mesmo depois de tantas conquistas históricas. No Brasil, o país que se orgulha de sua diversidade, o ideal da “mistura” ainda incomoda — especialmente quando ela é pública, visível e desestabiliza antigas estruturas racistas. No mês da Consciência Negra escolhemos falar de um tema que atravessa afetos, corpos e fronteiras: relacionamentos inter-raciais. Conversamos com um casal que vive diariamente a experiência de amar apesar — e também por causa — das diferenças. Ele, negro. Ela, italiana, loira. Apenas um casal ou um ato político? Nesta entrevista, eles falam sobre racismo, olhares externos, construção familiar, identidade, resistência e sobre como o amor, quando consciente, se torna também um gesto de luta.
A história de Paulo Guedes, 62 anos, e Elisete Dadalt Guedes, 59, chama atenção não apenas pelo tempo de união, são 33 anos de casamento, mas também pela forma como vivem, com naturalidade e respeito, uma relação inter-racial em uma região de colonização italiana. Ele, negro, natural de Jaguari. Ela, branca, natural de Doutor Ricardo. Um casal que, segundo eles, nunca fez da cor um problema, mas reconhece que isso ainda incomoda parte da sociedade.
Eles se conheceram na faculdade. Paulo é formado em Licenciatura Plena em Educação Física pela Unisinos. Elisete é pedagoga, formada pela Ulbra. Desde o início, a cor da pele nunca foi um entrave na relação. Elisete lembra que a recepção em casa foi natural. “Quando o Paulo chegou, minha mãe disse: ‘Tu vai casar com ele?’. Ele foi recebido com carinho desde o início”, relembra. A resposta veio com um sorriso tranquilo de Paulo: “A família dela sempre me tratou bem. Nunca senti rejeição, nem indireta.”
Questionados se já viveram alguma situação de preconceito explícito, eles negam. “Não. A gente nunca passou por isso diretamente, nem com olhares, nem com falas ofensivas”, garante Elisete. Mas Paulo acrescenta: “Claro, a gente sabe que o racismo existe, sim. Mas a maneira como tu te apresenta muda tudo. Comigo, sempre vem primeiro o professor. Depois, o cidadão Paulo, negro.”
Educador por profissão, Paulo sempre atuou com crianças, o que, segundo ele, ajuda a derrubar barreiras. “As crianças não têm preconceito. É o adulto que ensina isso. E quando tu conquista as crianças, tu conquista os pais. O olhar muda.” Por muitos anos, ele também manteve uma escolinha particular em Encantado, onde apenas uma pequena parte dos alunos era afrodescendente. “A maioria era de famílias de origem italiana. Mas nunca houve conflito. Quando o pai conhece o professor, o julgamento muda. A pele passa a ser detalhe.”
Elisete reforça que, ao longo das décadas, a cor da pele jamais foi uma questão entre os dois. “Relação é amor, é parceria. Se há respeito, o resto não pesa. A gente sempre seguiu a vida com naturalidade.” Ainda assim, o casal reconhece que há realidades diferentes fora de Encantado. “Talvez aqui a gente não viva o preconceito. Mas se tu vai pra outras regiões, é mais visível. Já tive parentes que sentiram o preconceito”, diz Paulo. E completa: “Mas a gente também não tá incomodando. Só estamos vivendo a nossa vida com dignidade. Isso às vezes mexe com quem não entende.”
Sobre racismo estrutural, Paulo é direto: “Existe, claro. Mas o negro também tem que fazer a parte dele. Não pode ficar esperando. Tem que estudar, trabalhar, construir. Ninguém vai te dar espaço. Tu conquista.” Paulo e Elisete são pais de duas filhas, uma médica e uma advogada, e seguem transmitindo dentro de casa os mesmos valores que acreditam e praticam: respeito, esforço, responsabilidade e consciência. “Sempre falei pra elas: oportunidade tem. Mas tu tem que fazer tua parte. Se tu não fizer, ninguém faz por ti.”
Paulo também leva esse olhar para dentro da sala de aula. “Eu sempre digo para eles: ninguém vai te dar nada de graça. Tu tem que querer, tem que correr atrás. A oportunidade tá aí, mas tu precisa estar preparado pra ela. Se tu não fizer tua parte, não adianta reclamar”, afirma.

Maria Cecília: o verdadeiro significado da vida de Paulo e Elisete
Por Fernanda Lima






