Na biblioteca de Albertslund, em Copenhague, um estudante loiro escolhe o título “Solitário” entre dezenas de livros. Em alguns minutos, um homem de 38 anos e cabelos escuros vem caminhando ao encontro do jovem. Eles se sentam em torno de uma mesa e, então, a leitura começa.
Oskar Zytnik, o homem de cabelos escuros, é o livro. Aske Bruun-Schmidt, o jovem loiro, seu leitor. Nas Bibliotecas Humanas, pessoas são livros, e seus títulos, suas histórias — muitas delas sobre preconceito.
A ideia do projeto dinamarquês é fazer com que, ao ouvi-las, os “leitores” se tornem mais tolerantes. Ou, como diz Ronni Abergel, criador do programa, para que as pessoas “não julguem um livro pela capa”. A primeira unidade das Bibliotecas Humanas, criadas em Copenhague, completou 21 anos em junho. Hoje, o projeto já se expandiu para outros 84 países —em seis continentes—, entre eles o Brasil.
No caso da capital dinamarquesa, os eventos com livros humanos acontecem de duas a três vezes por mês em bibliotecas públicas, escolas e universidades. “Vamos dizer que você tem medo de pessoas com HIV ou é inseguro sobre quem crê no Islã ou até que você é potencialmente homofóbico. Conhecer essas pessoas pode ajudá-lo a entender melhor os grupos que representam e as comunidades de onde vêm”, explica Abergel.
Entre as opções de livros humanos, há títulos como “Cego”, “Refugiado”, “Muçulmano”, “Perseguida pelo Marido”, “Autista” e “Solitário”.
Nanna Juul-Olsen, 28, tem dois títulos na Biblioteca Humana de Copenhague. Em uma mesa de conversa, a voluntária dinamarquesa é o livro “Bipolar”. Minutos depois, em outra leitura, ela é “Bissexual”. O tema da conversa depende da escolha do leitor. Em alguns casos, quando os leitores perguntam relações e diferenças entre os livros, ela é, como em sua vida real, os dois títulos ao mesmo tempo.
Em “Bipolar”, explica como o estágio depressivo da doença a deixa sem energia para sair de casa. Por anos, Nanna tentou trabalhar, mas deixava de ir ao emprego por não ter forças para se levantar da cama. “Compartilhar minha história ajuda as pessoas a desfazerem o estigma de que pessoas com doenças psiquiátricas são perigosas”, afirma.
“Toda vez que eu sou ‘retirada’ da biblioteca escuto uma pergunta para a qual eu não estava preparada. Então aprendo algo sobre mim mesma, porque escolho responder. E eles também aprendem porque respondo a todas as perguntas. Os dois lados saem mais sábios.”
Protagonista dos títulos “Refugiado” e “Muçulmano”, Abdollah Shakib, de 32 anos, compartilha a história de como sua família fugiu da guerra civil no Afeganistão, em 2000, para a Dinamarca. Pouco depois do recomeço no novo país, veio o atentado às Torres Gêmeas, em Nova York, em 2001, e a caçada ao saudita Osama Bin Laden no Afeganistão. Seu país era debatido no mundo inteiro.
“Meus colegas na escola me interrogavam se eu faria algo do tipo com eles. Eu dizia que não, mas não resolvia o problema. A partir daí fiquei sem muitos amigos”, conta Abdollah.
Hoje, o afegão é fluente em dinamarquês e trabalha como geólogo em Copenhague. Há três anos, decidiu participar das Bibliotecas Humanas. “Eu também tento entender a razão de as pessoas fazerem o que fazem e falarem o que falam. Por isso estou aqui, para me conectar com as pessoas. Eu também tento remover meus preconceitos.”
Bibliotecas Humanas no Brasil
No Brasil, as Bibliotecas Humanas foram organizadas em Manaus, na Universidade Federal do Amazonas, no ano passado. Abergel, criador do programa, afirma que o projeto —sem fins lucrativos— ainda precisa de parceiros locais e espaços para outros eventos no país. Tanto os interessados em organizar filiais da biblioteca quanto os que querem compartilhar suas histórias podem se tornar parceiros do programa por meio da página oficial da iniciativa.
“Não estamos aqui para convencer as pessoas de certa opinião ou visão. Estamos aqui para publicar informação, e o que você faz com essa informação é responsabilidade sua. Esperamos que você use para entender melhor e respeitar as pessoas diferentes de você”, diz o autor do projeto.