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Vitório Gheno: vida, trabalho e arte

Prestes a completar 100 anos de vida, Vitório Gheno segue atuando em diferentes ramos das artes plásticas

Vitório Gheno é um dos mais talentosos e brilhantes homens de arte que o Rio Grande do Sul já conheceu e, acima de tudo, uma referência para todos nós. Homem múltiplo, é hoje, aos 99 anos, ainda um atuante artista plástico, designer, ilustrador e aquarelista, além de ter sido, ao longo da vida, também publicitário, jornalista, designer de mobiliário e decorador de ambientes.

Trata-se de uma história única, ímpar, que tem registros que sua prodigiosa memória nos resgata em cada momento de seu convívio, como, por exemplo, apenas para inicialmente citar uma, o fato de ele ter sido ilustrador da célebre e lendária Revista do Globo, no final dos anos 1930.

Há quase quatro décadas, Gheno mora nos altos da Rua Duque de Caxias, de bruços para o Viaduto Otávio Rocha. E além de continuar um artista em pleno ritmo de produção, é um homem sintonizado com o seu tempo e atento às transformações sociais. Uma pessoa que faz planos, a caminho da sabedoria que o tempo normalmente traz.

Nascido em Muçum (“ainda tenho lembranças de meus avós e parentes na cidade”) ele chegou a Porto Alegre, aos quatro anos, com os pais, que vieram trabalhar na Capital com os produtos do “tio Luís Michelon” (irmão de sua avó), que era vitivinicultor em Caxias e foi o primeiro produtor de champagne do Brasil, tendo trazido a técnica da França. Na Capital, foi estudar italiano na Dante Alighieri – escola para filhos de imigrantes italianos.

E lá teve o primeiro contato com livros de arte que vinham da Itália, com ilustrações belíssimas. Isso, conta ele, foi o estímulo para a iniciação artística.

Vitório começou então a fazer pequenos desenhos em aparas de papel (que buscava na Livraria do Globo), e lá, tendo sido descoberto pelo gerente, acabou, já aos 14 anos, iniciando a trabalhar na notável Seção de Desenho da Globo, então chefiada por Ernst Zeuner, artista alemão radicado em Porto Alegre. Imaginem o que possa ter significado essa escola – a melhor história gráfica de toda a história do Rio Grande do Sul – para um talentoso menino de 14 anos, ávido em aprender, descobrir, voar.

Ele conta que sempre gostou muito de arte, de moda, de revistas. “A Revista do Globo estava começando. Mas lá eu aprendi muito, ela foi um maná para mim, uma fonte de observação de vida. Além disso, convivi com pessoas interessantes, de alto nível intelectual, como Erico Veríssimo, Iberê Camargo, Mario Quintana… Convivi com todas as correntes, com gente de todas as raças e todos os credos. E fui somando essas experiências, cercado de inteligências raras. Acabei trabalhando lá até os 20 anos.

Com a guerra, houve falta de papel, a Globo passou a rarear suas edições e eu achei que tinha que ir embora de Porto Alegre. E então fui para Buenos Aires, com uns 21 anos e pouco dinheiro”.

Assim, de uma hora para a outra, em meio aos impactos da Segunda Guerra Mundial, lá estava aquele rapaz frequentando a sociedade argentina – artistas sempre são bem-vindos. Logo em sua chegada na capital portenha, Vitório já conheceu editores de famosas revistas locais e, apenas uma semana depois, ele já estava trabalhando para importantes editoras como a antiga Peuser e Parati (que ainda existe), além de renomadas agências de publicidade como a Grant e a Proventas.

Em busca de um chão firme para a arte

Depois de viver e trabalhar em Buenos Aires entre 1945 e 1948, Vitório voltou e ficou trabalhando por uns dois anos no não menos lendário Correio do Povo. E passou a frequentar a Escola de Belas Artes da Ufrgs, onde conheceu e conviveu com mestres como Fahrion, Fernando Corona e Ângelo Guido, entre outros grandes artistas, que ficaram seus amigos.

Nessa época, já no final dos anos 1940, ele conta que fez uma grande exposição de aquarelas na então galeria do Correio do Povo. “Vendi tudo, troquei por dólares – que na época do pós-guerra valiam muito na Europa – e me fui para Paris, que nos anos seguintes viveria sua melhor época. Poucos antes, eu tinha ficado amigo do diretor da revista Rio, Henrique Pongetti, que se encantou com meu trabalho, passou a publicar capas com a minha arte e que, quando soube que eu iria para a França, me contratou para que eu fosse nos desfiles de moda (eu tinha passaporte de jornalista) e de lá mandasse desenhos, que, acreditem, quando eu cheguei lá, eu enviava pela Panair… Fiquei em Paris quase dois anos, e foram dois anos espetaculares. Eu ganhava em dólares e gastava em francos.

E, além de morar no mesmo prédio do Iberê Camargo e do Carlos Scliar (Hôtel Montparnasse), convivi com pessoas como Justino Martins, Rubem Braga e Athos Bulcão, entre outros expoentes como os franceses Sartre e Braque. Foi uma época muito boa”.

No início dos anos 1950, nos chamados “anos dourados” (um efervescente período de transformações sociais, econômicas, urbanas e comportamentais), Vitório volta então ao Brasil, mais precisamente ao Rio de Janeiro – onde viveria por quase uma década – para ser diretor de arte e arte-finalista da célebre agência de propaganda McCann Erickson, onde ajudou a criar várias campanhas publicitárias antológicas, para empresas como Esso, Coca-Cola e SAS (Scandinavian Airlines).

Além de, imaginem só, ter disso o autor do projeto gráfico da capa da Revista Manchete nº1 (inspirado na revista francesa Paris Match), à época, ao lado da Cruzeiro, uma das duas maiores do país.

Foi nessa época que aconteceria outro impulso em sua vida. Ele conta que, “no Rio de Janeiro, eu frequentava um café de intelectuais chamado Vermelhinho, na Cinelândia, na rua México, em frente à Associação Brasileira de Imprensa, onde iam artistas, escritores, gente de teatro, escultores… E foi lá que eu conheci um grande e notável artista, designer de móveis, chamado Joaquim Tenreiro, um português radicado no Rio. Ficamos amigos e eu comecei a ter ideias para criar mobiliário.

Passei, então, a frequentar o atelier do Tenreiro, onde estudei a proporção do mobiliário contemporâneo brasileiro. Ele me presenteava com os seus móveis e lembro que me deu uma cadeira chamada Três Pés, que hoje é um ícone do mobiliário mundial: ele só fez 8 delas e cada uma delas vale muito atualmente. O Museu de Arte Moderna de Nova York, por exemplo tem um exemplar. Pena que eu não tenha mais a minha. A verdade é que, a partir daí, comecei a gostar de decoração”.

No final dos anos 1950 Gheno volta, enfim, a Porto Alegre, e se estabelece na rua 24 de Outubro, onde manteve, por três décadas, uma loja de decoração e uma galeria de arte com suas obras. Nos anos 1970, ele se especializa em decoração de hotelaria e design mobiliário: “Eu assinei muitos projetos de decoração de várias redes hoteleiras nacionais cinco estrelas, como a Rede Tropical de Hotéis da antiga Varig e a Rede Plaza de Hotéis, onde todos os móveis foram desenhados por mim e, à época, fabricados em madeira maciça, sob minha total supervisão. Cheguei a levar comigo daqui marceneiros que eu mesmo ensinei”.

A propósito, Gheno diz que “a realidade do Brasil, em arte, mostra que viver somente da arte atrapalha o artista na sua criação, pois a necessidade de sobreviver o pressiona. Portanto, a decoração acaba sendo um bom complemento profissional e de sobrevivência ao longo da vida, sem interferir na pintura do artista; pelo contrário, contribui para sua evolução. Por isto, só agora, com a minha idade, posso viver somente da minha arte”.

“Minha longevidade decorre, em boa parte, do golfe”

Aliás, foi através da decoração de interiores que o golfe entrou na sua vida. “Eu conhecia muitos sócios do Porto Alegre Country Club e acabei fazendo trabalhos de decoração para o próprio clube. Até que o então presidente, Antônio Chaves Barcellos (que dirigiu o clube entre 1955 e 1956) me chamou e me disse que eu deveria me associar, pois era muito querido de todos. E me deu uma ação de sócio e até um conjunto de tacos de golfe. Eu aí eu comecei a frequentar o clube e a hoje já fazem mais de 60 anos que eu jogo golfe.

E continuo jogando! Acho que minha longevidade decorre, em boa parte, do golfe. Fiz um cálculo e conclui que, somando todos os jogos, caminhei mais de 40 mil quilômetros no campo de golfe. Minha vida dependeu muito do esporte, da natureza, dos grandes e muitos amigos”.

Além do golfe, Gheno relembra que “ao longo das décadas, criei e pintei muitas obras de arte para o clube – que estão lá até hoje – e fiz vários trabalhos de decoração, incluindo a reforma da piscina, além de ter repaginado e modernizado a logomarca do Country.

Sem esquecer que há uns 35 anos, quando o arquiteto Pedro Simch executou a ampliação do espaço onde agora é o Bar Inglês, eu fui chamado – mais uma vez – para assinar o projeto de decoração. Hoje, desde a penúltima edição, tenho criado os troféus dos torneios de encerramento do ano, bem como, com muito orgulho, os do importante e tradicional Campeonato Sul Brasileiro Amador de Golfe, como ocorreu este ano”.

Hoje, Vitório Gheno é, acima de tudo, mesmo aos 99 anos – fará 100 em outubro –, um homem que cria arte, que trabalha. Diz que “trabalhar, na minha idade, é uma dádiva. Eu sempre trabalhei, pintei e pratiquei esportes. Vivo do que eu crio e pinto, até hoje”. E, ao falar nisso, se permite a uma carinhosa e fundamental reverência: “Mas, com certeza, posso dizer que só estou aqui hoje por causa da Nádia Raupp Meucci, que conheci em 1993. Com a ajuda e colaboração dela, de forma incondicional, sistemática e determinada, pude fazer tudo que fiz nas últimas três décadas, tempo em que minha arte pictórica evoluiu como nunca antes. Ela me acompanhou, me fortaleceu e me fez ter vontade de viver. Minha vida é, sim, dividida em duas fases: antes e a partir da Nádia”.

A propósito, aqui é importante destacar que o único livro de arte sobre a trajetória artística de Vitório Gheno, intitulado Gheno Artista Plástico, foi justamente de iniciativa e autoria de Nádia, para o qual ela pesquisou longamente durante 11 anos, antes de publicá-lo em 2006. Sem este livro, acredita Gheno, “minha obra se perderia no futuro”. Além do livro, ele também faz questão de “agradecer publicamente à Nádia pelo canal Flâneur Arte Foto, que ela criou e mantém – sob suas próprias expensas – no Youtube, onde gravo meus depoimentos, que depois são editados e publicados por ela em forma de vídeos, autorizados por mim”.

“O importante é viver sem exageros”

Sobre seu conhecido e invejável estilo de vida, Gheno refuta a ideia de as pessoas o terem como irreverente. Diz que não sabe se é assim, e complementa: “Eu sou um artista e, portanto, gosto de me vestir bem e com cores, gosto de combinar tudo, gosto do que é bom e duradouro. Sou de uma época em que tudo durava: móveis, sapatos, roupas. Sempre fui muito observador dos costumes e comportamentos, além de viver com parcimônia, tendo o trabalho como atividade principal. Penso que isto contribuiu para que chegasse nos chamados savoir vivre e savoir faire. Mas o importante é viver sem exageros, ser comedido, não comprar coisas demais, comprar coisas boas. Viver muito é uma questão de inteligência, de acordar com vontade de viver. Ah, e mais três coisas importantíssimas: ter sempre alguém que você goste ao seu lado, viajar bastante (não se encarcerar) e sempre ter um projeto de vida, ter planos, não viver só o dia a dia”.

Já no final da conversa, ele se revela um homem atualizado e faz uma ressalva importante: “Eu sempre gostei muito de refletir sobre arte e mercado. Observo a era digital e posso dizer que o computador até ajuda na formatação e a internet na divulgação e disseminação da informação, mas na verdade, nem a máquina, nem a web criam artistas. A verdadeira arte depende de talento e criatividade. Atualmente o mundo está lotado de curiosos”.

E aí, lembra que não pode esquecer de falar no Grêmio, outra de suas paixões. Gremista desde guri e então morando na 24 de outubro, ele começou a frequentar os jogos ainda na velha Baixada, que ficava na atual avenida Goethe, esquina com a Mostardeiro. Ele conta, com orgulho, que “no fim dos anos 1990, tive a felicidade de ser convidado, por várias gestões do Grêmio, para criar telas com temas gremistas, inclusive pela gestão que construiu a nova arena no Humaitá, inaugurada em dezembro de 2012, onde estão as dezenas de telas que pintei, decorando a administração do clube. Na mesma época, também criei dois grandes murais gigantes, executados em pastilhas de vidro, de 3 por 7 metros, representando a Baixada e o Olímpico, que estão nas paredes Norte e Sul da entrada para os camarotes na arena nova; além de ter assinado o projeto de decoração de todos os 145 camarotes do novo estádio”.

Aos 99 anos, em plena atividade

Visivelmente feliz com sua vida e sua obra, Vitório Gheno faz uma pausa em sua sempre entusiasmada e enriquecedora conversa, respira fundo e se anima ao falar de seus novos projetos: “Eu sigo trabalhando e pintando. Atualmente a Nádia e eu (por iniciativa dela) estamos preparando uma exposição com obras novas e inéditas que estou pintando, embora nós ainda não saibamos dizer quando e onde será”. Aliás, é impressionante vê-lo pintando, concentrado, mas leve, fazendo fluir seu magistral talento e brotar sua arte, alternando riscos firmes com pinceladas suaves que misturam cores pastéis e vibrantes, sempre em busca de um harmonioso e belo resultado final, como pode ser visto nas fotos que ilustram essa matéria.

Antes de finalizar, ele deixa aos jovens mais uma de suas incontáveis lições, como referência de vida. “Eu sugiro que os jovens estudem muito, pratiquem esportes e trabalhem muito, durante toda a vida. O trabalho é o verdadeiro elixir da longa vida, não existe espaço para a aposentadoria”.

E o mestre Vitório Gheno conclui dizendo: “Olha, eu gostaria de contar muitas coisas mais e falar sobre muitas experiências fantásticas nesses meus 99 anos, mas com certeza não caberia tudo nessas páginas. Portanto, para aquelas pessoas que se interessarem em saber mais sobre a minha biografia, eu gostaria de convidá-las a visitar o link no fantástico mundo digital, onde leio os meus jornais todos os dias, inclusive o nosso grande Jornal do Comércio.

E, também, eu não poderia finalizar essa entrevista sem agradecer por tantas pessoas maravilhosas que eu conheci ao longo de minha vida até aqui e as que continuo conhecendo. Isto me faz viver”.

* Fernando di Primio é jornalista (formado pela Famecos/PUCRS), bacharel em Direito (UFRGS), editor, escritor e poeta. Tem seis livros publicados e uma longa trajetória, nos últimos 40 anos, como publisher de revistas, com ênfase no setor de supermercados.

** Nádia Raupp Meucci é produtora cultural e fotógrafa.

Fonte
Jornal do Comércio
Agro Dália

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