#Página Três | Marketing: As lições da vitória de Trump para as empresas
Esta coluna é sobre comunicação, estratégia e negócios, não sobre política. Nesse sentido, a campanha de Kamala Harris foi um dos maiores equívocos que já vi. A campanha democrata já seria muito difícil, dados os passivos do impopular Joe Biden, o equívoco de tentar reeleger-lhe apesar de sua saúde precária e o pouco tempo de Harris como cabeça de chapa. Mas a extensão da derrota se deve também a uma campanha desconectada do pulso da nação.
Quando tinha 15 anos, fiz um programa de intercâmbio nos EUA. Morei 6 meses numa fazenda em Iowa, numa cidadezinha chamada Pisgah. Meus “pais” americanos eram um fazendeiro e uma professora primária. Lindas pessoas: trabalhadores, religiosos, conservadores. Pessoas para quem o Partido Democrata, pelo qual eu torço, esqueceu de falar. E, o que é pior: de ouvir.
Como disse o senador Bernie Sanders, ao invés de partido da classe trabalhadora, o Partido Democrata virou um partido de elites. Se eu não me engano, democracia é ouvir a população, seus anseios e suas frustrações, e endereçá-los. E não me parece que a campanha de Harris fosse o caminho para as demandas e as inquietações dos americanos. O resultado foi acachapante.
Trump e os republicanos venceram com folga e força, contrariando a maioria das pesquisas, que também não souberam ouvir as pessoas. O eleitor americano está assustado com o aumento do custo de vida, a imigração ilegal, a sensação de insegurança e a queda do poder americano num mundo em guerra. Aflições cotidianas que passam longe dessa elite que apoiou Harris em peso, mas que
Não sofre quando (e se) vai ao supermercado, nem enfrenta as ansiedades do cidadão comum diante de tantas mudanças. A campanha de Harris era linda, os comerciais eram maravilhosos, os comícios ficavam lotados. Só que a candidata acabou falando com um público já conquistado antes mesmo de começar a campanha.
Harris cometeu um erro crasso, que todo mundo que já trabalhou em campanha política conhece: não admitir que precisava consertar erros e ajustar a estratégia. Ao aparecer só com grandes artistas identificados com determinado campo do eleitorado, toda vez que ela subia no palco com um deles, perdia um voto no outro campo, no público conservador dos meus pais americanos, que ela precisava ao menos em parte conquistar. Ela acabou escolhendo ficar contra a maioria. Pelo menos foi o que apareceu na hora que conta: a contagem dos votos.
Isso é um desvio importante dos objetivos da campanha, de qualquer campanha, e uma preocupação que a publicidade precisa ter sempre em mente: devo falar o que eu e minha bolha queremos falar ou devo falar o que eu preciso para obter o resultado que busco em determinado público-alvo?
É uma linha fina, de difícil ajuste. E que obviamente deve seguir padrões éticos e de respeito a todas as pessoas.
Para ser eficiente no grande mercado, é preciso sair da bolha. Mais do que falar para os outros, comunicar é ouvir os outros. E ouvir, vamos lembrar, é democracia também.
Um grande exemplo desses riscos é o caso da Bud Light. A cerveja perdeu a liderança do mercado americano em 2023 ao ser alvo de boicote popular, depois que a empresa contratou uma simpaticíssima ativista trans para uma campanha ligada a um torneio de basquete. Meses depois, a cerveja fez uma nova campanha com Dana White, chefão do UFC, ligado a Trump, mas mesmo assim não conseguiu voltar a ser a número 1 do mercado.
O último desfile da Victoria’s Secret neste ano, que trouxe de volta os corpões esculturais das modelos, mas misturados com mulheres de todas as silhuetas e perfis, mostra as marcas voltando para o centro e fugindo da polarização redutora e, muitas vezes, agressiva. Parece que, após um grande movimento “woke” (que garantiu avanços importantes e necessários), o movimento conservador despertou também e mobiliza suas forças num mundo em redes e poder pulverizado.
As marcas devem refletir sobre isso, assim como os políticos refletirão. O que cabe nesta coluna é mostrar o impacto dessa onda conservadora também no mundo da comunicação. Como no voto, a decisão de compra do consumidor está cada vez mais politizada e polarizada. A vitória de Trump não foi pequena nem discutível. Foi uma vitória avassaladora. E a mensagem das urnas não vem só de eleitores, vem de consumidores também.
Para ser eficiente no grande mercado, é preciso sair da bolha. Mais do que falar para os outros, comunicar é ouvir os outros. E ouvir, vamos lembrar, é democracia também.
-Nizan Guanaes é estrategista da N Ideias. Artigo publicado no jornal Valor Econômico.
É possível encontrar muitas semelhanças com as campanhas de Encantado, Porto Alegre, São Paulo…
Nizan Guanaes é um dos grandes nomes da publicidade, e não é para menos. Sua lucidez e entendimento do comportamento humano o levaram a conquistar prêmios, assinar grandes campanhas de marcas renomadas e a vencer campanhas políticas. Embora frequentemente “enquadrado” como alguém de esquerda, ele demonstra ter uma capacidade única de sentir o “mercado” ou seja, os consumidores. E, no fim das contas, esses consumidores são também os eleitores. São pessoas reais, com necessidades, anseios e frustrações que precisam ser ouvidas.
Diferente de alguns de seus pares, Nizan Guanaes observa a realidade sem filtros ideológicos, enquanto muitos marqueteiros têm colhido os frutos de campanhas desastrosas, sejam elas publicitárias ou políticas. Vale ressaltar que o publicitário vive o capitalismo em sua forma mais crua e direta. Trocando em miúdos: saia da sua bolha para conquistar o mercado, seja ele vestido de eleitor ou de consumidor.
Jornada JR da América Latina