A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos ouviu em audiência pública, na manhã desta quarta-feira (20), entidades e lideranças da comunidade de surdos que reivindicam a instalação de Centros de Intérpretes de Libras (CIL) com profissionais certificados para que tenham acesso aos seus direitos básicos de cidadania. O RS não dispõe desses centros para o acesso aos serviços públicos essenciais e Porto Alegre, mesmo com lei aprovada no ano passado nesse sentido, também não disponibiliza pessoal habilitado para atender às 62 mil pessoas com deficiência auditiva que moram na cidade.
Conduzida e proposta pela deputada Sofia Cavedon (PT), a audiência, em formato virtual, demandou a contratação, pelo gabinete da parlamentar, da intérprete de Libras Luciana Vargas, uma vez que a Mesa Diretora não disponibilizou recursos para esse fim. Nos encaminhamentos, além de solicitação formal à Mesa da Assembleia para que contrate esses profissionais para atuarem nas reuniões de comissões, audiências públicas e outros eventos realizados no Palácio Farroupilha, também constou o envio de documento à Famurs e aos 497 municípios gaúchos para que adotem com urgência os Centros de Intérpretes de Libras. A comunidade de deficientes auditivos também sinalizou contrariedade com o teor do PL 293/2021, do Executivo, que tramita na Assembleia para instituir a Lei Gaúcha da Acessibilidade e Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Cavedon destacou a promulgação em 2020 da Lei 12.743, que criou o Programa Central de Intérpretes de Libras para Deficientes Auditivos, Surdos e Cegos, iniciativa que ainda não foi efetivamente implantada na Capital e não alcançou a esfera estadual. Disse que preparou minuta de projeto para esse fim, tema que será debatido com a comunidade surda. Sobre a Lei de Acessibilidade gaúcha, antecipou que as críticas da comunidade surda são de que o conteúdo do projeto do Executivo não dialoga com a linguagem deles, que é a Língua Brasileira de Sinais, Libras.
Com formato virtual que centralizou a imagem do falante e da intérprete de Libras na tela, para permitir a tradução e visualização de sinais, foi possível a participação de diversos líderes de associações de surdos tanto de Porto Alegre quanto de Alvorada, Viamão, Bento Gonçalves, Uruguaiana, Caxias do Sul e Pelotas. Os jovens ativistas dos direitos da comunidade surda querem que seus direitos sejam assegurados, com acessos aos bens e serviços públicos essenciais, como saúde e segurança, com a garantia legal da presença dos intérpretes de Libras para capacitá-los à plenitude como cidadãos e o usufruto de seus direitos.
Pablo Schwelm, da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos, iniciou fazendo sua audiodescrição, que é o recurso que define imagens em palavras e garante acessibilidade aos deficientes visuais. Ele pediu o cumprimento da lei que cria os Centros de Intérpretes de Libras e explicou que as barreiras que enfrentam no cotidiano impedem o acesso aos serviços públicos. Sem o auxílio de familiares, não conseguem comunicação no posto de saúde, hospital, bancos ou numa delegacia de polícia, por exemplo. A primeira linguagem do surdo é por meio da Libras, que se materializa por sinais e movimentos faciais num vocabulário próprio, sendo o português a segunda língua, mas, conforme Schwelm, para muitos algumas palavras são incompreensíveis e de difícil entendimento.
“Não podemos continuar vivendo dessa forma, temos o direito à independência, de não depender dos familiares para circular nos ambientes”, disse, justificando a urgência da disponibilização dos intérpretes de Libras nos espaços públicos. Também da Federação, Diego Silva relatou a expectativa gerada com a aprovação da lei de criação das CILs na Capital, mas até agora sem efeito prático na vida da comunidade surda. Ele também referiu os obstáculos diários que enfrenta para acessar serviços essenciais e pediu mobilização para que a lei seja cumprida.
A presidente da Sociedade dos Surdos do RS, Renata Heinzelmann, referiu que essa é uma luta antiga e vinculada aos direitos essenciais dos surdos, contando que, numa consulta em hospital, o paciente surdo não consegue entender uma receita médica ou a descrição do seu problema de saúde, a menos que esteja com familiar.
“Muitas vezes temos que pedir que alguém escreva em português porque ninguém consegue se comunicar com o médico”, explicou. A acessibilidade do surdo é o reconhecimento da Libras, afirmou Renata, ao reivindicar a presença dos intérpretes em todos os ambientes públicos possíveis. Ela observou, ainda, que é preciso que esses profissionais tenham certificação, pois em alguns locais pessoas com formação inicial fazem o atendimento, mas de forma precária para os surdos, “são muitas narrativas dos surdos de vivências em locais com intérpretes de forma precária”.
Outra liderança surda, Ricardo Goes invocou o Decreto 5.626, que regulamenta a lei que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais, Libras, onde consta que “todos os atendimentos precisam prestar acessibilidade para a comunidade surda”, o que não se efetivou no RS, reclamou. Relatou contato com a Fadergs para a criação da Central de Intérprete de Libras, ação que na prática não se confirmou. Sugeriu lei estadual para obrigar o governo a oferecer esse serviço aos surdos. E relatou as dificuldades da comunidade nestes dois anos de pandemia, quando a maioria ficou “presa” em casa, com consultas médicas remotas e dificuldades na comunicação, “nada disso é satisfatório e quebra nossa autonomia e capacidade do exercício pleno da cidadania”, desabafou.
Serviços restritos
A secretária da Associação de Surdos de Alvorada, Izabel Cristina, tem atuado na linha de frente dos espaços públicos para conseguir acesso aos serviços, até mesmo com algumas brigas, como afirmou. “Temos que cobrar o tempo todo, eles mostram um serviço bonito, mas na prática tem falhas”, disse Izabel, como foi o caso de uma substituição de intérprete que demorou quatro meses para ser substituído ou, pior ainda, o fato de que o serviço da Central de Intérprete de Libras de Alvorada funciona de segunda a sexta-feira, em horário de expediente, quando há registros de mulheres surdas que enfrentam situação de violência doméstica e não denunciaram pela falta de espaço adequado. Para isso é preciso atendimento pleno, reivindicando o serviço 24 horas e também nos finais de semana. Reclamou de falhas no atendimento do serviço.
Da Associação de Surdos de Parobé e Região do Vale do Paranhana, Miriam Matana relatou situações como a de jovens surdas que tiveram acessos a exames preventivos aos 24 anos ou o caso de gestante surda, com diabetes gestacional, que, sem intérprete na consulta, quase recebeu soro com glicose. Mostrou que também os currículos profissionais desse grupo são desprezados, e pediu que as prefeituras contratem intérpretes credenciados e capacitados para auxiliá-los na comunicação.
De Caxias do Sul, da Sociedade dos Surdos, Francine Pedrotti relatou as dificuldades do cotidiano, especialmente com a falta de intérpretes disponíveis na cidade. Ela também manifestou preocupação com os casos de violência doméstica e as dificuldades para a vítima surda fazer a denúncia.
Pela Fadergs, a coordenadora de Acessibilidade, Aline Monteiro, concordou que é preciso ampliar os horários de atendimento, referindo-se às centrais que funcionam em Alvorada e Horizontina. Disse que anotou os pedidos de ajustes para melhorias nas centrais que a Fadergs acompanha, antecipando que a Fundação vai realizar concurso público para preencher duas vagas de intérpretes de Libras no estado, seleção que deverá acontecer ainda neste ano. E será dado impulso para que os municípios constituam suas centrais. Também relatou cursos de Libras voltados para os servidores públicos, em formato online, para facilitar o acesso no interior do estado, justificando que se trata de iniciação, para atendimento inicial dos surdos, uma vez que o intérprete de Libras que é capacitado para a comunicação plena com esse público. À Polícia Civil foi dado curso de capacitação para atender a comunidade surda.
A deputada Luciana Genro (PSol) solicitou que a Assembleia disponibilize intérpretes de Libras não apenas para as sessões plenárias, como já acontece, mas das reuniões e audiências públicas e outros eventos que acontecem na Casa. Os mandatos têm contratado intérpretes mas os movimentos sociais não dispõem de recursos para esse fim, defendendo que a Assembleia ofereça esse serviço para todos os eventos
Deivid Correa, da Associação de Surdos de Viamão, contou a mobilização iniciada ano passado na cidade, em função da dificuldade de surda para receber atendimento médico. Já identificaram 150 deficientes auditivos e também relatou caso de violência doméstica de mulher surda que não conseguiu fazer o Boletim de Ocorrência. D’Angelo de Oliveira, da Associação de Surdos de Uruguaiana, conseguiu avançar na Câmara de Vereadores um projeto para a criação da CIL na cidade, mas foi vetado por falta de verba.
De Bento Gonçalves, o professor de Libras Leonardo, vinculado à Associação de Surdos, destacou as dificuldades dos escolares sem intérpretes, situação que se reflete também nos cuidados médicos e nos órgãos públicos em geral, como em concursos públicos, cujo acesso é inviável aos surdos. Disse que a Câmara local aprovou matéria sobre a CIL, mas não foi efetivada. Também da Associação, Larissa relatou caso de menino surdo que se inscreveu no concurso da Caixa Econômica Federal, comprou material e há um mês procura intérprete porque o material digital não tem acessibilidade. Depois de muito esforço e através de uma “vaquinha”, o jovem terá um intérprete contratado para estudar a menos de duas semanas do concurso.
A professora Fabiane Saidelles, da Escola de Surdos Bilingue Salomão Watnick, de Porto Alegre, falou sobre a falta de intérpretes para atender a prefeitura da Capital, que muitas vezes solicita os professores da escola para prestar esse serviço em eventos sociais ou culturais. Cristina Laguna, do IFRS – Campus Alvorada, que coordena o curso técnico de interpretação de Libras, lamentou que os avanços legais não se refletem no cotidiano da população surda, uma vez que a lei determina a presença dos intérpretes em cada uma das secretarias e órgãos públicos, conforme consta no Decreto 5626, no artigo 26, “o poder público deverá garantir às pessoas surdas ou com deficiência auditiva o amplo atendimento pelo uso de pessoa para a tradução de Libras”.
Alessandra Goulart, da Associação Gaúcha de Intérpretes de Língua de Sinais, disse que há uma visão assistencialista do profissional intérprete, o que é equívoco porque têm qualificação e certificação, “escolher o preço do nosso trabalho não é justo”, afirmou. Os casos relatos que envolvem saúde e risco de vida, sem o intérprete qualificado, podem configurar violência comunicacional com o sujeito surdo, alertou.
Também o presidente do Condepa, Nelson Kalil, apoiou a demanda da audiência e antecipou as dificuldades encontradas no PL 293/2021, do Executivo, que institui a Lei Gaúcha de Acessibilidade, tanto que ele defende a retirada da matéria.