Nesta sexta-feira (29), mais de 1 milhão de brasileiros sacaram sua parcela do Bolsa Família, como fazem todos os meses. E acabou.
Depois de 18 anos, o programa de transferência de renda que já foi considerado modelo no mundo paga seus últimos beneficiários antes de sair de cena, extinto pela Medida Provisória 1.061, que cria o Auxílio Brasil.
Oficialmente, o Bolsa Família só termina na próxima semana, quando a lei que o criou será revogada. E ainda pode voltar – caso o Congresso deixe caducar ou altere MP. Mas, pelo menos por enquanto, é o fim.
Para os beneficiários – 14,84 milhões em outubro, segundo o Ministério da Cidadania – o que vem é a expectativa e a incerteza sobre o programa que deve substituí-lo.
O governo promete começar a pagar o Auxílio Brasil já em novembro. Mas, ainda na quinta-feira, anunciou mudanças no valor: depois de prometer um valor mínimo de R$ 400 aos beneficiários, vai deixar esse valor para dezembro. Para o próximo mês, fica valendo apenas o reajuste de 20%.
Histórico
O Bolsa Família foi criado em 2003, pelo então presidente Lula. Mas sua base veio de antes: o programa veio a partir da unificação de uma série de benefícios já existentes. Lá atrás, o valor pago era de R$ 50 por família em extrema pobreza, com um acréscimo de até R$ 45 dependendo da composição familiar.
“Com um gasto muito pequeno, que não chegava a meio por cento do PIB, ele conseguiu romper o círculo vicioso da pobreza”, lembra Sandra Brandão, economista da fundação Seade. “Ninguém imaginava que um programa com um custo tão baixo, aplicado do país inteiro por um volume tão grande de pessoas, pudesse dar tão certo”.
Um estudo do Ipea divulgado em 2019 apontou que, em 2017, as transferências do programa retiraram 3,4 milhões de pessoas da pobreza extrema e outras 3,2 milhões da pobreza. E, de 2001 a 2015, o programa respondeu por uma redução de 10% da desigualdade no país.
O mesmo Ipea também mostrou que cada real investido no programa geram R$ 1,8 no PIB, criando um efeito benéfico ao crescimento do país.
Sandra Brandão aponta ainda que houve efeitos positivos sobre a saúde e a educação, com queda de 58% na mortalidade infantil, aumento da frequência escolar e – graças à melhoria na alimentação – na altura das crianças.
Um relatório publicado pelo Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas do Ministério da Economia, já em 2020, apontou que “o programa conseguiu com sucesso reduzir a pobreza no Brasil de modo significativo”.
Defasagem e reajuste
Nos últimos anos, no entanto, o benefício vem sofrendo forte defasagem. O último reajuste foi ainda em 2017, e a inflação corroeu boa parte do poder de compra desde então. Segundo o economista da FGV Marcelo Neri, o Bolsa Família precisaria hoje de um reajuste de 32,2% apenas para recuperar as perdas desde 2014 – mais do que os 20% anunciados para o Auxílio Brasil.
Sandra aponta que, diante dessa perda, “é absolutamente necessário reajustar” o valor do benefício – seja com o nome que for –, ainda mais diante de uma inflação em alta. “Se a gente usasse o parâmetro do Banco Mundial significaria algo da ordem um benefício de R$ 300 o benefício individual”, aponta.
As críticas vêm não em relação ao reajuste, mas à forma como ele está sendo operacionalizado, com o estouro intempestivo do teto de gastos, e sem uma garantia de recursos para além de 2022.
Para Sandra, o teto de gastos é incompatível com o reajuste – desejado – no valor dos benefícios. Mas o processo de ‘retirada’ desse teto não pode ser feito aos solavancos. “Você tem que enfrentar esse debate. Acho que tem que sair você pode ter políticas de controle de gastos públicos, metas fiscais. Agora, isso precisa ser mais inteligente“, diz.
“Qualquer economia que você faz com Bolsa Família rende muito pouco, então, eu acho que é sempre grande o risco de piorar”, diz Marcelo Neri. “Um ajuste fiscal onde sempre os pobres são os primeiros da fila, não acho que seja uma boa política nem social nem econômica”.
Neri lembra ainda que o Auxílio Brasil define um ‘bônus’ até o final de 2022, mas sem apontar continuidade para ele. ”A gente não sabe exatamente o que vai acontecer depois”, diz.
Incertezas
O fim do Bolsa Família deixa as milhões de famílias na incerteza – inclusive sobre se vão receber qualquer ajuda em novembro. Isso porque, segundo técnicos do Congresso especialistas em Orçamento, não haverá mais base legal para o governo transferir o dinheiro por meio dele.
Mas, para que o governo pague o Auxílio Brasil, é preciso que o Congresso aprove um projeto de lei enviado que transfere R$ 9,3 bilhões do orçamento de um programa para o outro. Outra opção seria o governo editar uma nova medida provisória que modifique o prazo dado pela primeira para a revogação do Bolsa Família. Além disso, durante a tramitação da MP, o Congresso poderia suprimir o trecho que revoga a lei do Bolsa Família.
“Neste momento está todo mundo com frio na barriga”, diz Sandra Brandão, do Seade. “Até agora não tem valor e não tem recurso para pagar (o Auxílio Brasil), e o Bolsa não pode mais ser pago porque no dia 7 de novembro ele não existe mais”. “A partir do 7 de novembro não pode usar mais nada do Bolsa para pagar as pessoas”.
“Operacionalmente não tem nada pronto. Os parceiros (prefeituras) onde as pessoas vão bater na porta se o dinheiro não entrar no dia certo não têm noção do que vai acontecer também”, diz.
Marcelo Neri aponta ainda que o novo programa é bem mais complexo que o anterior, o que pode causar dificuldades na operacionalização dos pagamentos, mesmo que os recursos estejam disponíveis.
“Tem muita incerteza porque o que está sendo proposto é uma mistura de coisas complexas”, diz. “Foram propostos nove benefícios, uma coisa bem mais complexa do que o Bolsa Família. Algumas ideias até boas, mas uma coisa é você pensar um programa, outra coisa é você executar esse programa”.
“E você saindo de um programa bem avaliado como o Bolsa Família, sempre tem um risco de piora”, pondera. “Torcer para que ela (a operacionalização) seja o mais bem sucedida possível, mas não é uma coisa trivial não assim”.
“Ter mudado o nome do programa eu acho bobagem, mas é politicamente pode ser relevante”, diz Sandra Brandão sobre a ‘troca’ de programas sociais. Ele (o presidente Jair Bolsonaro) podia perfeitamente com um decreto ter aumentado bastante o valor dos benefícios, e com isso você mantinha a um programa que funciona maravilhosamente bem, e ele tinha lá marquinha dele”.
“Nossa história é de descontinuidade de políticas e programas, e quando a gente tinha um tão bem sucedido, tão reconhecido, de repente numa canetada vai embora”, lamenta.